Avaliação com equidade: integrando gênero e interseccionalidade para fortalecer políticas públicas
Samuely Bezerra Laurentino
Mestre em Administração pela Universidade de São Paulo (FEA-USP). Participou do programa Jovem Avaliador do FGV CLEAR na edição 2024/2025.
O campo da avaliação de políticas públicas vem sendo gradualmente influenciado por metodologias e enfoques críticos, entre eles os de gênero e feministas. Essas abordagens ampliam as possibilidades de construção de conhecimento e de tomada de decisão mais sensível às desigualdades estruturais que atravessam os públicos beneficiários das políticas.
É fundamental reconhecer que, em muitos contextos, diferentes gêneros, raças e identidades dissidentes enfrentam barreiras sociais, econômicas e culturais específicas. Essas diferenças influenciam tanto o acesso quanto os benefícios gerados pelas políticas públicas, o que significa que os resultados nem sempre são equitativos.
Dados globais e regionais consistentemente mostram disparidades significativas. Por exemplo, na América Latina, mulheres negras e indígenas apresentam indicadores socioeconômicos consideravelmente inferiores em comparação a homens brancos e até mesmo a mulheres brancas, demonstrando como as desigualdades se manifestam de maneira combinada (CEPAL, 2023). Estas disparidades se refletem em aspectos como representação política, renda, acesso à saúde, educação e proteção contra violências.
Dessa forma, políticas públicas devem promover medidas capazes de eliminar barreiras estruturais, normas sociais discriminatórias e dinâmicas de desiguais como condição para um desenvolvimento sustentável, para a redução da pobreza e de desigualdades de gênero e sociais (OCDE, 2022).
Neste texto, apresentamos fundamentos para a integração de gênero (gender mainstreaming) e interseccionalidades na avaliação de políticas públicas, tais como o valor intrínseco de direitos humanos, que sustenta a necessidade ética dessa integração no ciclo da política pública; e a constatação de que identificar desigualdades de gênero e raça e buscar sua superação pode aumentar a eficácia e a sustentabilidade das políticas e dos programas de desenvolvimento.
Segundo Lombardo e Meier (2006), é mais fácil apresentar a integração de gênero a partir de um conjunto “neutro” de ferramentas, numa perspectiva mais técnica, do que com base em premissas feministas mais profundas – como o enfrentamento das hierarquias de poder ou o questionamento radical de processos e da própria formulação de políticas públicas.
É importante notar que esta despolitização da agenda de gênero, embora possa facilitar sua incorporação institucional, pode resultar em abordagens superficiais que não abordam as causas estruturais das desigualdades, já que não existe setor ou área na política pública que seja “neutra a gênero” (ONU, 1997). Bacchi (2009) argumenta que quando as questões de gênero são tratadas como meros “problemas técnicos”, perdem seu potencial transformador e podem até perpetuar estruturas de poder existentes sob uma aparência de mudança.
Já segundo Harvey e Safier (2021), abordagens genuinamente feministas buscam mudanças transformadoras que desafiem estruturas patriarcais e relações desiguais de poder. Estas estratégias reconhecem a diversidade de feminismos e focam em mudanças sustentáveis e duradouras que enfrentam as raízes da discriminação. Para além das abordagens técnicas, as estratégias feministas são conscientemente políticas, interseccionais e orientadas para garantir que pessoas impactadas por desigualdades possam exercer escolha e agência nos processos de mudança. No contexto da avaliação, isto significa considerar o que é “sucesso” a partir de diferentes ângulos e vozes no processo avaliativo e como as próprias metodologias podem reproduzir ou desafiar desigualdades existentes.
Uma das ferramentas mais conhecidas no campo da avaliação é o gender mainstreaming, ou integração de gênero. Definida pela ONU (2022) como
“…o processo de avaliar as implicações para mulheres e homens de qualquer ação planejada, incluindo legislações, políticas ou programas, em todas as áreas e em todos os níveis. Trata-se de uma estratégia para tornar as preocupações e experiências de mulheres e homens uma dimensão integrante do desenho, implementação, monitoramento e avaliação de políticas e programas em todas as esferas – política, econômica e social – de modo que mulheres e homens se beneficiem igualmente e a desigualdade não seja perpetuada”.
Podemos destacar três abordagens da integração da perspectiva de gênero nas avaliações (ONU, 2022; PODEMS, 2010; UNICEF, 2024):
- Sensível a gênero: Reconhece desigualdades de gênero e adapta a metodologia para que diferentes vozes sejam ouvidas. Contudo, não necessariamente questiona as estruturas de poder subjacentes.
- Responsivo a gênero: Além de reconhecer desigualdades, analisa criticamente como a intervenção afeta ou é afetada por diferenças nas relações de poder.
- Abordagem transformativa de gênero: Explicitamente visa identificar, questionar e contribuir para transformar normas e estruturas que perpetuam desigualdades de gênero e outras formas interseccionais de opressão.
A integração da perspectiva de gênero não deve se limitar a programas voltados a mulheres, mas ser utilizada em qualquer intervenção, já que a lente de gênero abarca também outras dissidências e revela desigualdades invisibilizadas de maneira sistêmica. Icaza e Vázquez (2016) afirmam que a integração de gênero se tornou uma ferramenta comum e frequentemente elogiada nas práticas contemporâneas de desenvolvimento. No entanto, essa incorporação foi “cooptada” ao tratar gênero como uma questão de eficiência em vez de abordá-lo como uma questão de justiça social (ICAZA e VÁZQUEZ, 2016, p. 65). Brisolara et al. (2014, p. 127) confirmam: “as abordagens de gênero são percebidas como menos ameaçadoras do que a avaliação feminista, já que as abordagens de gênero não buscam, de forma explícita, desafiar o status quo social, político ou de poder.”
É nesse cenário de insuficiências práticas que surge a Avaliação Feminista. Um enfoque feminista amplia a capacidade de compreender a complexidade dos problemas públicos e de aprimorar o uso da avaliação como ferramenta de decisão, incorporando a interseccionalidade como categoria analítica transversal a todas as fases da política pública. Podems (2018) propõe alguns princípios para exemplificar como um monitoramento e avaliação feminista são mais que uma integração de gênero, como: a ciência de que as experiências pessoais, perspectivas e características da pessoa avaliadora provêm de uma determinada posição política e também a reforçam. Assim como a premissa de que o conhecimento é contingente do ponto de vista cultural, social e temporal, e que existem múltiplas formas de “conhecer”. Também é um dos princípios de uma abordagem feminista na avaliação compreender que métodos de pesquisa, instituições e práticas são construções sociais e que desigualdades de e discriminações com base em gênero, raça, classe e cultura são intrinsecamente ligadas, sistemáticas e estruturais.
Originalmente desenvolvida por Kimberlé Crenshaw (1989) para analisar como raça e gênero interagem na experiência de mulheres negras, a interseccionalidade expandiu-se como ferramenta teórico-metodológica para compreender como diferentes eixos de opressão (gênero, raça, classe, sexualidade, deficiência, entre outros) operam não apenas de forma aditiva, mas ocorrem no contexto de sistemas e estruturas de poder interligados, gerando experiências qualitativamente distintas de exclusão e privilégio (HANKIVSKY, 2014).
Idealmente, a abordagem feminista/interseccional deve ser incorporada desde o início do ciclo da política. No entanto, mesmo quando essa perspectiva não está presente na formulação ou implementação, é possível (e desejável) integrá-la no momento da avaliação. Isso pode ser feito ao:
- Garantir a participação efetiva de públicos historicamente marginalizados;
- Aplicar métodos sensíveis e adequados às realidades vividas por esses grupos;
- Evitar danos ou reproduções de violência simbólica e estrutural no processo avaliativo;
- Formar equipes de avaliação diversas e com expertise em gênero e interseccionalidade;
- Revisar criticamente as perguntas avaliativas, incorporando questões sobre impactos diferenciados e transformação de relações de poder;
- Desagregar e analisar dados por múltiplos eixos de desigualdade;
- Utilizar métodos mistos que permitam captar tanto a dimensão quantitativa quanto as experiências qualitativas dos diferentes grupos;
Apesar dos avanços, ainda persistem desafios significativos para que gênero e raça não se restrinjam apenas à coleta de dados desagregados, mas sejam de fato eixos orientadores de todo o processo avaliativo. Já um dos desafios para a avaliação feminista é o próprio nome. Dialogando com Podems (2018), a Avaliação Feminista se baseia em três crenças: de que a equidade entre as pessoas é fundamental, que as desigualdades de gênero geram injustiças sociais e que essas desigualdades são estruturais e sistemáticas. Não é necessário se identificar como feminista para aplicar esses princípios; basta reconhecer que eles podem contribuir para qualificar o processo avaliativo. Incorporar uma ou mais dessas perspectivas pode aprimorar desde a definição das perguntas avaliativas até a coleta e análise de dados, gerando achados mais relevantes e recomendações mais eficazes. Assim, adotar essa perspectiva não exige um rótulo, mas sim o compromisso com avaliações mais justas e transformadoras.
REFERÊNCIAS
BACCHI, C. Analysing policy: What’s the problem represented to be? Pearson Education, 2009.
BRISOLARA, S.; SEIGART, D.; SENGUPTA, S. (Org.). Feminist Evaluation and Research: Theory and Practice. 1. ed. New York: The Guilford Press, 2014.
CEPAL. Panorama social da América Latina e Caribe. Santiago: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, 2023.
CRENSHAW, K. Demarginalizing the intersection of race and sex: a Black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. The University of Chicago Legal Forum, n. 140, p. 139-167, 1989.
HARVEY, R.; SAFIER, C. Transformative Change for Gender Equality: Learning from Feminist Strategies. Kathmandu: Friedrich-Ebert-Stiftung Nepal Office; Gender Justice Hub Asia, 2021. Disponível em: <https://books.google.com/books/about/Transformative_Change_for_Gender_Equalit.html?id=sg_EzwEACAAJ>. Acesso em: abr. 2025.
HANKIVSKY, O. An intersectionality-based policy analysis framework: critical reflections on a methodology for advancing equity. International Journal for Equity in Health, v. 13, n. 1, p. 119, 2014.
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LOMBARDO, E.; MEIER, P. Gender mainstreaming in the EU: Incorporating a feminist reading? European Journal of Women’s Studies, v. 13, n. 2, p. 151-166, 2006.
OCDE. Development Co-operation Report 2021: Shaping a Just Digital Transformation. Paris: OECD Publishing, 2022.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS – ONU. Handbook on gender mainstreaming for gender equality results. 2022. Disponível em: <https://www.unwomen.org/en/digital-library/publications/2022/02/handbook-on-gender-mainstreaming-for-gender-equality-results>. Acesso em: abr. 2025.
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PODEMS, D. Making Feminist Evaluation Practical. Evaluation Matters, Fourth Quarter, 2018. Disponível em: <https://idev.afdb.org/sites/default/files/Evaluations/2020-03/Making%20Feminist%20Evaluation%20practical.pdf>. Acesso em: abr. 2025.
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