Os impactos de uma política pública no desenvolvimento infantil e na parentalidade

25 de janeiro de 2023 - 11 min de leitura

por: Equipe FGV Clear

Tags: Avaliação Educação parentalidade PIM Política Pública primeira infância Primeira Infância Melhor Programa

Malu Delgado, jornalista política e especialista em Gestão Pública.

Ao final da terceira gestação, Angélica Borba, 25 anos, apresentou sinais de depressão pós-parto. Além de não conseguir cuidar do bebê, Lucas Gael, ela tinha dificuldades de se levantar da cama para dar atenção ao filho mais velho, Joaquim, 5 anos, e ao do meio, João Vicente, de 3. Com renda familiar mensal de R$ 1.700, vivendo no pequeno município de Arambaré, no interior do Rio Grande do Sul (RS), ela e o marido perderam um ente querido na pandemia de covid-19. Angélica também teve que lidar com a morte recente do sogro. Lucas Gael está hoje com seis meses, saudável. Há cinco meses, Angélica iniciou um tratamento psicoterapêutico, que lhe livrou de ideações suicidas e lhe permitiu retomar gradualmente o foco e a relação de afeto com os 3 filhos. Para isso, ela contou não apenas com o encaminhamento médico, mas com uma rede de apoio montada pelo Programa Primeira Infância Melhor (PIM), criado pelo governo do Rio Grande do Sul em 2003, que consiste em visitas domiciliares para acompanhar o desenvolvimento das crianças e orientar os pais. Desde a primeira gestação, a família de Angélica é acompanhada pelo programa. 

Mais longeva política pública intersetorial com foco no desenvolvimento integral na primeira infância do Brasil, o PIM está sendo avaliado por uma equipe de pesquisadores do FGV EESP CLEAR desde 2018. Famílias como a de Angélica participam de rodadas de pesquisas e o objetivo é que as crianças sejam acompanhadas ao longo de décadas, até alcançarem a vida adulta. Será a primeira avaliação longitudinal produzida no Brasil de uma política pública que foca no desenvolvimento infantil de 0 a 6 anos e na parentalidade. 

O PIM adota uma abordagem lúdica, envolvendo cuidadores e crianças nas atividades. Foto: Bell Boniatti/Acervo PIM/Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

Em 2022, após uma difícil trajetória de adaptações e redesenho do programa por causa da pandemia, o CLEAR divulgou os primeiros resultados da avaliação experimental, feita em 15 municípios, a partir de entrevistas com cuidadores responsáveis por 2.419 crianças.  A coleta de dados foi feita em dois momentos: em 2018 (502 entrevistas presenciais) e em 2021 (478 entrevistas por telefone). 

Para fazer a avaliação experimental, a equipe do CLEAR divide as famílias em dois grupos: o de tratamento e o de controle, ou seja, acompanha os núcleos familiares que recebem as visitas domiciliares do PIM e os compara com famílias que não as recebem. Há, porém, o cuidado ético dos pesquisadores de excluir do sorteio as famílias em grave situação de vulnerabilidade, incluídas automaticamente no programa. A avaliação experimental foi possível porque em 2018 o programa estadual passou por uma nova fase de expansão para novos municípios. 

Evidências: elo entre pais e filhos é fortalecido

“Além do impacto sobre habilidades motoras, encontramos resultados sugestivos de que o programa melhora as habilidades parentais do cuidador de forma geral, e isso inclui, por exemplo, práticas positivas e a qualidade da relação do cuidador com a criança. Ou seja, há indícios de que o PIM melhora parentalidade”, explicou o economista Gabriel Weber Costa, pesquisador do CLEAR. Traduzindo as evidências em números, a pesquisa mostra que os cuidadores de famílias sorteadas para receber o programa (grupo de tratamento) permanecem 12 horas a mais com os filhos por semana, o que equivale a duas horas a mais de contato familiar por dia. 

Evidências indicam que o PIM contribui para melhorar a qualidade das interações familiares entre os beneficiários. Foto: Bell Boniatti/Acervo PIM/Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

Essas famílias também aplicaram 22% menos punições físicas (castigos e violências) nas crianças quando comparadas ao grupo de controle. Pais e mães atendidos pelo PIM têm mais livros infantis em casa (probabilidade 14,4% maior) e interagem mais com os seus filhos. Eles ensinam canções numa probabilidade 13,2% maior do que os cuidadores de crianças que não são acompanhados pelo programa. 

Os resultados apresentados acima estimam o “efeito da intenção de tratar”, parâmetro conhecido como ITT, da sigla em inglês. Esse parâmetro analisa o efeito médio do programa nos selecionados para receber o tratamento, ou seja, avalia os impactos sobre todas as famílias estudadas, mesmo aquelas que não tenham efetivamente participado do PIM.   

A pesquisa também trouxe evidências de que há consequências positivas do programa no desenvolvimento infantil, sobretudo nas habilidades motoras finas. “Já sabemos há muitos anos que intervenções na primeira infância têm esse potencial de gerar efeitos para o resto da vida das pessoas, em diversas dimensões, desde o desenvolvimento infantil a habilidades cognitivas, depois no mercado de trabalho, na saúde. É uma infinidade de efeitos potenciais. O que não é tão conhecido é como essas intervenções se comportam em larga escala. O PIM tem quase 20 anos, já atendeu mais de 200 mil famílias e é uma política bem estabelecida”, explica Gabriel Weber. 

A avaliação longitudinal sobre o PIM, que está sendo conduzida pelo CLEAR, será inédita no Brasil e trará dados robustos sobre esses efeitos de longo prazo quando se analisam políticas públicas em larga escala. “São as primeiras evidências desse tipo no Brasil e isso é muito importante para o debate público e acadêmico”, acrescenta o pesquisador.

Avaliar para aperfeiçoar a política pública

O processo de avaliação de uma política pública, destaca André Portela, diretor do FGV EESP CLEAR permite aos gestores do programa e aos avaliadores desenvolverem um aprendizado mútuo constante, abrindo possibilidades para novas intervenções e aperfeiçoamentos do programa. “Os resultados de avaliação do PIM são bastante interessantes. De um lado, mostram que o programa impacta positivamente sobre as habilidades motoras das crianças, bem como na qualidade da relação parental. Por outro lado, não encontramos evidências robustas de melhoria no desenvolvimento socioemocional das crianças. São informações relevantes que servem para qualificar futuras decisões do programa, bem como suas correções de rumos”, enfatiza Portela.

O PIM é a mais longeva política pública intersetorial com foco no desenvolvimento integral na primeira infância do Brasil. Foto: Bell Boniatti/Acervo PIM/Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

O diretor do FGV EESP CLEAR sustenta que todo processo de avaliação, como o do PIM, é um rico aprendizado a todos os atores envolvidos. O programa do Rio Grande do Sul, na visão de Portela, está bastante “maduro para ser reproduzido e ampliado para vários programas de primeira infância do Brasil”. 

Juliana Camargo, pesquisadora do CLEAR que também participa da pesquisa, reforça a importância de evidências para justificar investimentos em determinada política pública e promover inovações, sempre que necessário: “As inovações são sempre muito importantes, inclusive pelas dificuldades de implementação”. Segundo Camargo, a avaliação do PIM permite um espaço de troca de experiências inclusive com a política nacional do Programa Criança Feliz, também voltado à primeira infância. 

A equipe avaliadora do CLEAR aponta que o PIM pode ser aprimorado com novas estratégias para fidelizar um maior número de famílias e promover atividades para fortalecer outras áreas do desenvolvimento socioemocional e cognitivo das crianças.

Rede de parceria e atores políticos

A avaliação do PIM foi possível a partir da convergência de muitos atores. O elo entre o CLEAR e gestores públicos do Rio Grande do Sul começou a ser costurado em 2017, durante um curso de capacitação promovido pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV) e pela Universidade de Harvard sobre desenvolvimento infantil. “Neste curso surgiu a vontade de fazer uma pesquisa longitudinal no Brasil sobre um programa do porte do PIM, que já tinha mais de 15 anos de existência. A gente tem resultados significativos nas pesquisas de James Heckman [economista especialista em desenvolvimento humano e Nobel de Economia] e poderíamos produzir nossas próprias evidências científicas aqui no Brasil”, contou Karine Bernardes, pedagoga e coordenadora de pesquisa do PIM. 

Heckman demonstrou que políticas de desenvolvimento na primeira infância têm influência direta em resultados econômicos, sociais e de saúde em um país. “Queríamos uma avaliação de qualidade que realmente tivesse refinamento para conseguir analisar os impactos do PIM no desenvolvimento infantil, na interação parental e no acesso à rede de serviços”, explica Bernardes.

A equipe avaliadora do Clear aponta que o PIM pode ser aprimorado com atividades para fortalecer outras áreas do desenvolvimento socioemocional e cognitivo das crianças. Foto: Bell Boniatti/Acervo PIM/Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

“Temos a avaliação como um pilar estruturante de toda a nossa estratégia focada no desenvolvimento da primeira infância. Tanto a avaliação do processo quanto da implantação dos programas é muito oportuna para potencializarmos políticas públicas e programas como o PIM”, afirma Marina Fragata Chicaro, diretora de conhecimento aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV). Para Chicaro, os três atores envolvidos no processo avaliativo do PIM – o CLEAR, a Fundação e o governo do RS – compactuam do desejo de acompanhar crianças ao longo de anos em busca de evidências consistentes sobre a relação entre as políticas públicas de desenvolvimento na primeira infância e a ruptura de ciclos de pobreza. 

A diretora da FMCSV enfatiza que o período de 0 a 6 anos é conhecido como uma “janela de oportunidade para construir bases do cérebro”. É neste momento da vida que se forma uma arquitetura para a criança desenvolver competências e habilidades ao longo de toda sua vida. “O ambiente em que essa criança vive, as experiências, as relações e as interações que ela tem principalmente com os adultos, influenciam esse processo de desenvolvimento cerebral”, sustenta Chicaro, em defesa de programas como o PIM. 

Segundo Raphael Marques, analista de conhecimento aplicado da FMCSV, programas como o PIM, com foco na primeira infância, podem ser a alavanca para a redução de desigualdades sociais e econômicas no Brasil, rompendo ciclos geracionais de pobreza. 

Estudos longitudinais, como o conduzido pelo CLEAR, segundo Marina Chicaro, ajudarão a responder dúvidas sobre a sustentabilidade dos efeitos positivos das políticas públicas de primeira infância ao longo da jornada de vida. “Hoje a gente não tem como afirmar que esses efeitos se sustentam, ou se alcançam outros domínios ao longo do tempo. Precisamos seguir um pouco mais essas crianças ao longo do seu ciclo de vida. Instituições como o FGV EESP CLEAR desempenham um papel muito importante para ajudar a política a entender o que significam esses achados e orientar a tomada de decisão.”

A avaliação aponta que há consequências positivas do programa no desenvolvimento infantil, sobretudo nas habilidades motoras finas. Foto: Bell Boniatii/Acervo PIM/Secretaria da Saúde do Rio Grande do Sul.

Karine Bernades enfatiza que o fato de o PIM ser uma política pública prevista em lei, que perdura por vários e diferentes governos, abre espaço para constantes aprimoramentos e revisões. O programa é de livre adesão, cabe a cada prefeito informar ao Estado o interesse de participar. “Temos hoje 233 municípios com o PIM implantado até o momento. De janeiro a novembro deste ano [de 2022] já atendemos mais de 30 mil famílias e em torno de 38 mil gestantes e crianças.” 

Para a coordenadora de pesquisa do PIM, os resultados da avaliação apresentados pelo CLEAR são significativos e instigam a equipe a fazer revisões sistemáticas sobre o programa. “O PIM é um programa de visitação domiciliar que trabalha o desenvolvimento infantil na lógica do empoderamento da família. Perceber, na avaliação, que essa família realmente está olhando para essa criança, interagindo, melhorando a qualidade de vida dela, foi fundamental.” 

A avaliação mais sincera sobre o PIM é de Angélica. “Bem antes do Joaquim fazer um aninho eles já vinham aqui em casa. E para gente foi muito bom quando ele entrou na escolinha. Ele já sabia bastante de coisa, sabe? Coisinha manual. Ela [a visitadora] vinha com uns potinhos com as tampinhas com furinhos, assim, para ele encaixar os palitinhos. Eu e o meu marido a gente se encantava. Ajudou muito o desenvolvimento dele, sabe? Elas sempre me ajudaram. Quando eu não estava conseguindo cuidar dos meus três filhos foi uma fase bem complicada para mim. Eu me senti assim incapaz, só chorava. Consegui me abrir com elas e elas me acolheram. Agora estou neste acompanhamento e melhorei bastante.” Num processo de superação do estado depressivo, ela afirma que foi pelo PIM que aprendeu a lidar com cada fase de desenvolvimento dos filhos e a entender que as crianças não são iguais. “Ela já me orientou que cada filho é do seu jeitinho. Esse programa foi realmente muito importante pra mim.”

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